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terça-feira, 26 de julho de 2016

Contos de Ana - Olhos Dóceis


Como sempre estava atrasada. Trânsito dos infernos!

Atravessei a rua a passos rápidos sem me preocupar muito com os carros. Chegando na calçada não diminuí o ritmo. Quando estou irritada ando correndo. Ainda mais nesse vento gelado do outono que insiste em tornar meus cabelos um caos.

Alcancei enfim a portaria do prédio antigo. Odeio prédios antigos e seus elevadores idiotas. Ter medo de médicos e elevadores me faz sentir completamente ridícula e enfrentar os dois numa mesma manhã estava sendo demais pra mim.


Adentrei o consultório tal qual uma tempestade: descabelada e esbarrando em tudo. (Malditas pernas longas!) Tentei me acalmar e sorrir para a atendente. Estava tendo algum sucesso até saber que o Doutor Esteban estava atrasado. Poucas coisas me afetam mais que a impontualidade dos médicos. (Acalme-se, acalme-se, não vá esganar a garota!)

Fervendo de irritação acomodei-me no sofá, respirei fundo de olhos fechados e aos poucos fui recobrando o controle. Ao abrir os olhos, ele surgiu. Ele com seu largo sorriso se divertia perante meu evidente destempero. Sentir seus olhos escuros a me fitar foi uma sensação surpreendentemente agradável, pois seus olhos não eram de provocação, mas de cuidado. Naquele precioso nanossegundo me senti acolhida e segura. Sabe assim se sentir em casa? É isso!

Sua camisa xadrez, a barba perfeita e ar intelectual era tudo que imaginei para mim. Não aquele corpo viril e artificial de academia, mas o tipo esguio e elegante de quem sabe usar o que tem para arrancar suspiros. Carinhoso sem excessos, selvagem quando preciso. Perfeitamente lindo.


Nos conhecemos, toquei sua boca com a minha, morei em seu abraço, arfamos, gememos, tivemos dois filhos, cabelos esbranquiçaram, fizemos bodas de prata, tivemos netos que mimamos nas tardes de domingo. Vivemos quatro décadas naqueles minutos que me vi presa por seu olhar, hipnotizada por seu sorriso. Uma energia divina de simpatia recíproca preencheu o espaço vago na atmosfera que havia entre nós.

A moça chamou para a consulta, me arrancando do sonho.

Caminhei para o médico sem olhá-lo novamente, mas guardarei sua imagem para sempre na memória, como um par de olhos dóceis, que eu amaria eternamente.


Maldita timidez que me manteve inerte.


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